quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

"Ser ou não ser. Eis a questão".

Lembro que na tradução do livro quando li a história, a mais famosa frase de Shakespeare estava assim escrita: “Estar ou não estar. Eis a questão”. Encontrava-se ela, a frase, sublinhada por um risco de esferográfica vermelha feito por meu irmão mais velho, que lera o livro uma semana antes de mim. Questionei-lhe o motivo do destaque, e ele me disse que haviam errado na tradução. Bom, mas isso não vem ao caso, pois aqui se diz “ser ou não ser”.
Quantas dissertações poderiam ser escritas apenas sobre o conteúdo metafórico por trás dessa frase de apenas sete palavras? Quantas já não foram escritas?
O homem desde a escolha natural para ser o único animal pensante, vive o eterno paradoxo de ter que tomar as suas decisões escolhendo uma alternativa, em detrimento a outra, ou outras. É a luta da tomada de decisão presente em cada planejamento, ou escolha, quando esses terão que ser transformados em ação. Vivemos sempre sob a pressão das nossas preferências.
Biblicamente isso começou ainda com Adão. Ser fiel ao Deus que lhe criou, ou ser crente de que seria como o próprio Criador, conforme a serpente havia dito à sua adjutora?
E seguem as incertezas nas escolhas da alma, supostamente de lá para cá. Ser do bem, ou servir ao que chamam de mau? Ser corajoso, ou acovardar-se ante o perigo eminente? Ser educado, ou se fazer bruto? Ser honesto, ou participar dos acordos que facilitam a escalada social para um melhor status e posto? Quantas dúvidas pairam sobre as nossas cabeças quando temos que tomar alguma decisão!
Talvez o personagem estivesse em meio da sua mais cruel indagação e na procura pela resposta para agir sem nenhum contra-senso: Ser piedoso e perdoar o assassino, ou justiceiro e vingar a morte do pai? Não se nota a aflição em sua divagação? Eis a questão e o paradoxo do jovem Hamlet, em busca de sua asserção para fazer prevalecer a justiça do bem através do perdão tido como nobre, ou do mau pela vingança e que definharia, de certa forma, a sua virtude.
O autor põe nas palavras do personagem a monstruosa verdade que desnuda a alma humana em seus temores, e o faz pronunciar uma frase que pode representar, muito bem, toda a hesitação do gênero tido como inteligente.
Mas me questiono lendo a frase sobre o porquê alguém deve ser fiel aos dogmas arcaicos, alicerçados em verdades nunca comprovadas e leis que se mostram falíveis, quando o desejo de ser apenas o eu próprio de cada um quer prevalecer sobre o juízo delével e tido como o certo? Cimentado em qual fé, teria Shakespeare feito tal indagação através de Hamlet? Porque eu compreendo que as experiências do homem, em seu primeiro estado pós primitivo, acerca do que considerava como útil ou prejudicial, estava intrinsecamente ligadas à sua moralidade, ou seja, aos seus costumes (basicamente aos religiosos). Quero dizer, ao que ele acreditava ser santo, divino e inerente às deidades nas quais acreditava. Talvez repouse aí o porquê de tantas dúvidas, sobretudo no tocante as decisões que o homem deve tomar, pois creio que a moralidade em sua gênese embrutece, a priori. É como se o instinto, de vingança, por exemplo, tenha se tornado um sentimento complicado de falta de coragem, sob a ótica que os medos herdados da moralidade (leia-se costumes) fizeram estacionar sobre o homem de Shakespeare naquele instante. É como se esse fator inato do comportamento dos animais, sendo o homem apenas mais um na natureza, esteja sempre sendo julgado como bom ou má.
Algumas formas de pensar Deus acabaram fechando o que chamam de Livre Arbítrio em seu próprio favor. Como? Quando levam o homem a acreditar que a dúvida (ser ou não ser), faz nascer um pecado por si só. É como se o correto fosse lançarmos a fé sem o auxílio da razão, sem a intromissão do instinto, como se por uma intervenção do elemento que para elas, essas formas que pensam deus, é divino e extraordinário, tudo fosse resolvido ou dele nascesse todas as questões. Fomentam a falta de conhecimento e a embriaguez da fé para o alto, enquanto jogam a razão e a sabedoria num lamaçal tido como horripilante, degenerante do bem e onde não há perdão.
Não estou aqui fazendo apologia à vingança, apenas tentando mostrar meu ponto de vista para as constantes vezes em que nos deparamos com as contradições existentes em decisões, ou suas, às vezes, infinitas variantes.
A dúvida do personagem, assim como todas as nossas, parece cair no calabouço de mais uma dúvida: não sei exatamente o que faço agora. Não sei exatamente como devo fazer! Eis a questão. A quem deverei ser fiel?
Portanto, esse é o meu pensamento. Não sei se me fiz entender. Mas, para terminar, cito a famosa frase de Lutero: "este é meu conceito e outro não posso ter" (“Hier stehe ich, ich, kann nicht anders”).

Rudes Brasões

Do livro Timbre, que Virgílio Maia publicou no ano de 2002, pela Editora Giordano, de São Paulo, tiro o poema Rudes Brasões:

Meu avô imprimiu no couro vivo
de um boi brabo seu rústico brasão,
inflamada divisa do sertão,
que passou ao meu pai, qual aos meus tios.
A caatinga o forjou e deu brilho;
as veredas do tempo, as diferenças:
ao de um neto, um puxete e essa pequena
flor na ponta que de outros o separa
quando, aos berros do gado, se declaram
ferro e fogo das marcas avoengas.

Pois das eras salvou-se uma relíquia:
um chocalho amarelo e meio tosco,
que por anos batia no pescoço
de uma vaca de nome Colombina.
Hoje dobra, dorida, às tão tranqüilas
solidões da fazenda em que tocou.
No metal do seu corpo se engastou,
posta ali a punção, armorial,
uma marca indelével, o ancestral
e incendido brasão do meu avô.

ACM - O avô

Antônio Carlos Magalhães, o baiano, o avô, pode ter sido tudo na vida, até Toninho Malvadeza. Mas uma coisa ele não era: tolo. Tampouco imbecil.
Se eu o admiro? Ora, por sua inteligência, sim. E isso não quer dizer que eu concorde com as suas, digamos, falhas de caráter.
Algumas frases soltas dele:
- "Um homem não pode fazer-se sem sofrer, pois ao mesmo tempo é mármore e escultor."

- "A Presidência da República é destino. Você pode fazer a sua carreira política, a Presidência é destino."

- "Eu raramente digo palavrões e chego a corar quando mulheres os pronunciam em minha presença."

- "O governador que vigiar a família tem 80 por cento de chance de evitar a corrupção."
Verdades de ACM, odiado no Brasil e amado na Bahia. Fazer o quê, né?

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Êita, pau!

Quando os jovens Paulo e Márcia voltaram de sua lua de mel, foram morar num bairro da periferia de uma grande cidade. A casa, que fora presente do pai do noivo, se destacava pela beleza e tamanho entre as casas simples da vizinhança. Era uma casa nova e confortável, combinando com tudo que se encontrava dentro dela. Possuía vários compartimentos. Salas espaçosas e quatro quartos grandes, embora apenas duas pessoas fossem morar ali. A cozinha era ampla, talvez o maior compartimento da casa, e ficava na parte de trás do edifício. Daquele lugar dava para se ver a vila de casinhas, todas muito simples, que ficava por trás da rua onde o jovem casal foi morar.
Márcia servia o café da manhã ao marido, logo no segundo dia no novo lar, quando se deteve por alguns segundos e, parada, observava algo pela janela. O marido percebeu a distração da esposa e perguntou-lhe o que olhava.
- Vejo que há uma mulher estendendo alguns lençóis no varal – falou apontando a cena com a faca cheia de manteiga que iria no pão. - Mas como são sujos aqueles lençóis! Talvez ela não tenha sabão para lavá-los. Eu poderia dar algum pedaço para ela.
Paulo se pôs de pé, sem sair do lugar, e espiou lá fora. Viu que uma mulher estendia lençóis num varal, mas ficou calado.
Passados três dias a cena se repetiu. Márcia colocava a mesa para o café do marido, quando parou de repente e observou novamente a vizinha de trás, que estendia os lençóis como da vez anterior.
- Talvez ela não saiba lavar lençóis – falou sem esperar nenhum comentário do esposo. - Eu bem que poderia ensinar-lhe. Veja só que lençóis sujos!
Como Paulo saía religiosamente na mesma hora para o trabalho, o horário de acordar dos jovens era sempre o mesmo. E assim, a cada três dias, Paulo ouvia da esposa os mesmos comentários sobre a vizinha, que também era muito pontual na tarefa de lavar seus lençóis.
Certa vez, passadas algumas dezenas de dias, Paulo já estava sentado quando Márcia parou e olhou para fora. Eufórica chamou pela atenção do marido.
- Veja, Paulo. Que lençóis mais limpos! Aposto como uma outra vizinha deu-lhe um pedaço de sabão - falou pondo o leite na xícara do esposo. - Ou então, ensinou-lhe como se lava lençóis. Porque eu não fui!
Paulo ajeitou-se na cadeira, pôs os cotovelos sobre a mesa. Queixo apoiado nas duas mãos abertas para que os dedos abraçassem seu pescoço, falou para a jovem esposa:
- Não, minha querida. É que hoje levantei mais cedo e lavei as vidraças de nossas janelas.

Escrito em abril de 2003. Texto desenvolvido a partir de um e-mail com ilustrações, enviado por um amigo, no qual alertava contra vermos os defeitos dos outros através das nossas falhas.