quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

De Lula eu entendo!

Havíamos saído mais cedo da universidade naquela noite. O professor de ARH sofrera um acidente doméstico e não pôde lecionar no segundo horário. Combinamos, nós a turma do fundão da sala, de irmos tomar uma no CU. Calma gente! CU é simplesmente a abreviatura de Cantina Universitária, que na verdade é um barzinho a pouca distância do nosso campus, onde chegamos e ocupamos a mesa mais próxima da esquina que, também, era a mais chegada da TV. Éramos num grupo de seis alunos: Marcus Aurélio, o matemático da turma, que tudo levava para o campo dessa ciência; João Felipe, cujo apelido era Bala, festeiro contumaz; Celão, um cabra que quase não pára de crescer, e finalmente eu, que esqueci de crescer depois dos cento e sessenta e quatro centímetros. Bom aí, tem cinco e além da opção acadêmica em Administração, sentando-se todos numa amontoado de carteiras lá no fundo da sala, tínhamos também outra coisa em comum: éramos todos anti PT. O sexto faço questão de descrevê-lo: Dudu vestia uma camiseta vermelha com uma enorme estrela branca no centro dos peitos. Às vezes essas cores eram invertidas. Mas, a coleção daquelas camisetas parecia não ter fim. Não lembro de tê-lo visto vestido de outra forma. Calça jean’s desbotada, acompanhada de uma bolsa do mesmo tecido, tão velha quanto a calça, trazendo dentro de si não cadernos nem livros, mas recheada de panfletos e outros materiais de propaganda política; além do velho par de tênis da mesma cor da bandana que muitas vezes enfeitava, ou, enfeiava mais todas as outras combinações. Um tipo desses que encontramos aos montes em qualquer campus de uma capital brasileira qualquer, sobre um banco de concreto discursando para a massa de estudantes alheios aos seus gritos, sobre a importância do socialismo e a demoníaca ascensão do capitalismo sobre a classe proletariada. Um discurso antigo, mas ainda em uso. Dudu era a exceção do grupo, na área da política.
Foi sentarmos e na TV começar o horário político. Não tinha como dar certo. Outra vez, assim como tinha acontecido nos últimos dias, iniciou-se a discussão. Claro que Marcus Aurélio puxou logo tudo para o lado dos números e Dudu, defensor ferrenho de um certo barbudo, aloprou como de costume.
Estávamos tão extasiados na peleja, que nem percebemos quando o velho foi se aproximando. Fomos despertados do torpor das teimas, quando ele pediu licença para falar. Quem seria ele, perguntaram todas as mentes em uníssono silêncio.
- De Lula eu entendo – falou aproveitando a falta de sons.
Quando vimos, também já estava sentado e servindo-se da cerveja. Vestia uma roupa velha, rasgada em alguns pontos; a calça arregaçada até o meio das canelas finas, era de um brim azul há muito embraquecido; barba grande e maltratada; um boné surrado, sujo e rasgado, fechava a breve descrição daquele tipo. E sem que esperássemos resposta alguma, começou a sua história.
- Fui retirante da seca de 1961, viajei pra São Paulo, fugindo dessa peste, quando ainda era um menino de 16 anos de idade. Perambulei pelas ruas, passei fome, passei frio, fui discriminado até onde um ser humano pode suportar. Mas como almas boas e anjos maus existem em todos os cantos, uma alma boa me acolheu e me deu emprego de jardineiro. Fiz amizade com alguns rapazes da rua em que morava e, às vezes, até íamos bebericar alguma coisa juntos. Tinha um que era meu amigo mais chegado. No final de 1963, eu já era de maior, quando fui acusado de roubar uma bicicleta - fez uma pausa para beber um pouco da cerveja posta no copo e continuou. - Até hoje eu juro que não peguei no alheio, como meu velho sempre me ensinou. Mas para a minha surpresa, aquele amigo mais chegado, foi quem menos ouviu as minhas defesas. Usou até de seu conhecimento para dizer que num país num sei aonde, quem era pego roubando tinha a mão decepada. Juro que tremi na hora. Perdi emprego, perdi os poucos amigos e caí na marginalidade. Não escondo o que fui. Participei de um crime, fui pego, julgado e condenado. Da prisão comecei a ter notícias daquele velho amigo - fez outra pausa e encheu novamente o copo. - Um dia assistindo a TV, percebi que lhe faltava um dedo. Como perdeu aquele dedo? Pensei na sentença que ele me deu na ocasião do roubo da bicicleta. Aqui abro um parêntese para dizer que depois foi descoberto o ladrão. Havia sido um entregador de feira dum supermercado da região. Bom, mas ali estava eu preso, vendo o meu amigo subir na vida. “Que bom!” eu pensava comigo mesmo. Eu era transferido de um presídio pra outro e fui parar no Carandiru, onde terminei de cumprir a minha pena e de onde saí no dia 30 de setembro de setembro de 1992, dois dias antes do grande massacre. Procurei por aquele meu amigo, naquela altura um senhor respeitado, ouvido e amado por muita gente. Recebi o seu descaso, a sua completa ignorância ao meu respeito, e ainda tive que ouvi-lo contar de como a sua vida havia mudado, das novas amizades e das suas viagens. Algumas até pra o exterior. Hoje ele é o presidente da república. Sai de bom pra muita gente, mas eu sei quem é aquele cabra. E atesto sem rodeios: Lula não presta! Porque nunca vi um Lula bom, fora o Rei do Baião. E digo isso com conhecimento de causa. Às vezes me pego pensando naquela sentença que ele proferiu pra mim, e fico tentando contar quantas mãos seriam necessárias ele possuir para ser disciplinado por completo.
Todos ficamos calados. Então, ele pegou o copo de cerveja e embocou o seu conteúdo todo de uma vez dentro da boca de dentes sujos. Levantou-se e arrematou:
- Tenho 61 anos de Lula, pois meu nome é Luiz Gonzaga dos Santos. Também sou um Lula e, assim como os outros, não presto! – Sentenciou pondo ênfase na última palavra da frase.
Saiu devagar, arrastando os passos, sem olhar para trás... A cabeça ia baixa.
Depois ficamos a divagar sobre a veracidade da história e na teoria maluca daquele velho doido: Nenhum Lula presta! E pagamos a conta depois de relembrarmos vários Lulas que conhecíamos e que de fato não serviriam como bons exemplos. Apenas três haviam se salvado.
No outro dia, para a nossa surpresa, Dudu raspou a barba, cortou o cabelo, jogou fora o velho boné e chegou todo de azul na faculdade. Calça jean’s novinha. Nos pés um tênis americano da moda.
PS.: Era plena campanha para presidente, de 2006, e sempre discutíamos entre colegas sobre o melhor nome para tomar conta desse Brasil continental, quando nos apareceu um tio meu, apelidado de Lula, que dirigia o ônibus que nos levava à universidade, campus de Currais Novos. Ele ouviu por muito tempo a nossa discussão, depois saiu-se com essa "De Lula eu entendo". Para a criação da estorinha, foi um pulo de batente baixo, mudando apenas os nomes verdadeiros. Também não sou anti-Lula. Pelo contrário, até admiro muito o sujeito. Estou mais para fã dele, do que para inimigo voraz. Apenas sou um contador de causos, e como tal, criei, crio e criarei aqui nesse blog algumas situações que nem sempre serão verdadeiras. Mas cuidarei em dizer quando assim for.

3 comentários:

  1. Muito interessante a ideia do novo espaço. Com postagens da qualidade dessa, com certeza o blog está fadado ao mesmo sucesso do "acaridomeuamor". Já salvei o link no favoritos e fará parte da minha lista de acessos diários.

    PS: O personagem Jesus anda bebendo em suas histórias?? Cuidado: o sujeito recomeça assim.

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  2. Rapaz, esse professor de ARH sou eu???

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