sábado, 17 de janeiro de 2009

Jumento Solteiro

Quanto mais chovia, mais o tempo se fechava e a noite, escura feito breu derretido, seguia intranquila. Dentro da enorme casa de alvenaria, feita em grossas paredes de tijolos duplos, uma movimentação enorme se fazia notar. De vez em quando a luz de um raio iluminava mais o interior da habitação e fazia pequenos os fachos de luz emitidos por velas e candeeiros. A única janela aberta dava para o alpendre da frente da casa, que por ser virada para o sudeste, acabava impedindo que os pingos entrassem e molhassem o interior do edifício. Depois um som ensurdecedor fazia tremer e tilintar os cristais dentro de um grande móvel na sala.
Num dos quartos uma mulher gritava com dores de parto. Seu marido mandava-lhe calar a boca e botar a criança para fora logo. A parteira, desesperada pela dificuldade do parto, dividia-se entre a operação e impropérios jogados contra o homem.
- Ora! Cala a boca tu também, Chica da Luz. Tu num vê que tudo isso é manha dessa desafortunada?
A parteira velha, perdida nas contas de quantas crianças assistira nascer, abriu a boca sem dentes como que não acreditando no que ouvia, levantou se pondo de pé. O coronel pôde enxergar de perto como seu rosto era enrugado. Viu que a velha estava nervosa e, temendo a expressão da velha parteira, a quem diziam feiticeira, deu um passo para trás.
- Coroné, ou o inhô cala essa sua boca, ou eu mesma calo, lhe intupindo com esse pano aqui, ó! – e mostrou levantando ao alto o pedaço de tecido que usava para enxugar o suor da mulher que estava parindo.
Aos poucos a parturiente ia perdendo as forças. Já não gritava mais. A parteira levantou-se e chamou o marido para uma conversa.
- Coroné, num posso mais fazê nada. Aja logo, hômi de Deus! Invés de ficar aí feito tonto, manda Zé Buchada ir na rua, prumode trazê Dr. Lupinha.
- Ora, Chica! Então encomendemos logo o caixão. Se tu num pode, imagine aquele bebum!
Mesmo assim o homem foi até a porta da casa e abriu a parte de cima. Gritou por um nome diversas vezes. Então, entrou em casa e pegou uma espingarda, foi até o final do alpendre e deu um tiro. Logo se viu de frente a outro homem completamente molhado.
- Zé, pegue o Jeep, corra na rua e traga Dr. Lupinha aqui. Rápido, fio de uma égua – bradou com o empregado, empurrando-o pelas costas molhadas.
No curral feito de pedras sobre outras pedras, na lateral da casa, lutava para nascer também um filhote de jumenta.


Esse pedaço de texto acima, em azul para melhor destaque, faz parte de um projeto meu, cujo título é: As memórias do Jumento Solteiro. Coisa que nasceu desse meu quengo ávido por estórias engraçadas dos matutos que conheço, ou daqueles de quem só ouvi falar. Uma ficção para variar, em homenagem, também, ao jumento. Afinal, segundo alguns, aliás, segundo o Velho Lula, cabra que geralmente tinha razão, o jumento é nosso irmão.

O Jumento é nosso Irmão

autores: Luíz Gonzaga e José Clementino

É verdade, meu senhor
Essa estória do sertão
Padre Vieira falou
Que o jumento é nosso irmão

A vida desse animal
Padre Vieira escreveu
Mas na pia batismal
Ninguém sabe o nome seu
Bagre, , Rodó ou Jegue
Baba, Ureche ou Oropeu
Andaluz ou Marca-hora
Breguedé ou Azulão
Alicate de Embau
Inspetor de Quarteirão

Tudo isso, minha gente
É o jumento, nosso irmão

Até pr'anunciar a hora
Seu relincho tem valor
Sertanejo fica alerta
O dandão nuca falhou
Levanta com hora e vamo
O jumento já rinchou
Bom, bom, bom

Ele tem tantas virtudes
Ninguém pode carcular
Conduzindo um ceguinho
Porta em porta a mendigar
O pobre vê, no jubaio
Um irmão pra lhe ajudar
Bom, bom, bom

E na fuga para o Egito
Quando o julgo anunciou
O jegue foi o transporte
Que levou nosso Senhor
Vosmicê fique sabendo
Que o jumento tem valor

Agora, meu patriota
Em nome do meu sertão
Acompanhe o seu vigário
Nessa terna gratidão
Receba nossa homenagem
Ao jumento, nosso irmão
.

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